sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O show mais lucrativo da nossa história

Eu não sabia o que fazer. O que dizer à minha esposa, aos meus filhos. E, ainda mais, a todos os que tinham saído de suas casas para virem comigo. Ninguém esperava aquilo. Oramos, pedindo que a situação se resolvesse.
Algumas semanas antes eu recebo uma ligação. Era um grande produtor de eventos na Argentina. Ele me diz que gostava muito do meu trabalho, e que tinha todos os meus CDs. Fiquei impressionado, mas a imagem ficou abalada quando perguntei qual era sua música favorita. Ele não soube me responder.
A seguir, ele começa a tratar com minha esposa as questões burocráticas, e tudo que envolvia realizar um grande show na maior casa de espetáculos de Buenos Aires. Ele queria a banda completa, toda a estrutura de som e luz. Em outras palavras, seria a maior apresentação de nossa história. Minha esposa ficou muito animada, e reservou a data que ele queria em nossa agenda. Seria uma ótima oportunidade de tocar para aquele público que tanto gostava de nós. Há bastante tempo não tocávamos em Buenos Aires, aliás, ainda não tínhamos lançado nosso novo álbum quando tocamos lá pela última vez. Todos ficamos animados. A notícia logo se espalhou, e os ensaios gerais começaram.
Preparamos um show especial. Tocaríamos músicas novas, do novo disco, e também músicas dos outros, incluindo muitas do nosso disco de natal, que lançamos dois anos atrás. A decoração envolvia temas natalinos, como a árvore de Natal que minha esposa desenhou para o centro do palco. Ficou tudo muito bonito. No dia anterior ao show, bem cedinho, embarcamos no ônibus da turnê para a viagem. Seria uma viagem longa, de mais de 8 horas, mas nada que algumas boas conversas e muitas brincadeiras não fizessem encurtar o tempo. Nos sentíamos uma família, acho que essa é a melhor palavra para descrever o clima da viagem.
Quando chegamos a Buenos Aires, fomos direto para a casa de espetáculos. Montamos o equipamento, e nos preparamos para o ensaio final. Tudo correu muito bem, melhor até do que esperávamos. No finalzinho do ensaio, minha esposa recebe uma ligação. Pela expressão na sua face, percebi que não era algo bom. Quando terminamos a última música, perguntei a ela o que acontecera. Ela, com lágrimas nos olhos, disse:
“O produtor quer cancelar o show”
Palavras são poucas pra expressar a frustração que todos sentimos. Não sabíamos o que, naquela história, era verdadeiro e o que era falso. O que foi prometido a nós não foi cumprido, e agora havia uma decisão a ser tomada. Conversamos com o dono da casa de espetáculos por um longo tempo, e ele nos disse que conhecia nosso trabalho. Na verdade, era um grande fã da nossa música. E por isso havia concordado em cobrar tão pouco pelo aluguel do lugar. Com muito pesar, ele se despediu de nós, e disse:
“É uma pena que você não vai fazer o show. O aluguel já está pago, mas o produtor não vai conseguir arcar com os custos da sua banda.”
Não acreditei no que ouvi. No final, o dinheiro ainda tomava conta de tudo! Me indaguei se aquilo era mesmo o propósito do que eu fazia. Conversei com minha esposa, com minha banda, e chegamos a uma conclusão: iríamos fazer o show de graça!
Sabendo disso, o dono da casa de espetáculos ficou impressionado. E conseguiu um contato na rede local de televisão, e o show foi anunciado no horário nobre. A entrada era gratuita, queríamos que todos tivessem acesso ao que tínhamos preparado.
Dia do show, tudo pronto, chegamos a tempo de ver as filas se formando do lado de fora. Havia gente por todos os lados. Famílias inteiras, crianças, idosos, todos ali para participar daquele momento especial. Foi o público recorde da história daquela casa de shows. Nunca antes a cidade de Buenos Aires havia visto nada parecido.
Aquele show foi especial para nós. A música que fizemos vinha do coração. Muito mais do que o dinheiro que poderíamos ter recebido, o nosso salário ali foi algo muito maior que o dinheiro. Foi o sorriso daquelas crianças quando acendemos as luzes da árvore, foi o abraço do casal e de seus filhos na hora das músicas de natal, foi o encantamento do casal de idosos que não assistiam a algo parecido há muitos anos. Enfim, o nosso salário naquela noite foi o mais alto de nossa vida inteira...

Felipe Aguiar
Inspirado no incidente acontecido com Coalo Zamorano e Alex Campos, que fizeram um show gratuito após o mesmo ter sido cancelado.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Meio litro de sangue

Olá, leitores do Guarda-Roupa!
Depois de bastante tempo sem novidades, estamos de volta!
Com todo fôlego!
Espero que gostem!


"Eu preciso de um tempo para pensar..."

Foi com essa frase que nosso pequeno Timothy causou estranhamento a todos nós. Ele tinha apenas oito anos, mas sempre pareceu precoce, à frente do seu tempo. Aos cinco anos de idade, estava escrevendo suas primeiras palavras, e foi um dos primeiros de sua classe a aprender a ler. Mas, agora, essa frase parecia tão inapropriada...

Naquele dia, a irmã mais nova, nossa filhinha Judith, sofreu um acidente grave em casa. Com apenas dois anos e meio, acabou de aprender a andar, e já queria correr. Quis descer a escada correndo, apesar de todas as nossas restrições quanto a isso. A queda foi feia, e ela perdeu muito sangue.
Seria preciso mais do que o estoque do hospital fornecia. O sangue de Judith era de um tipo difícil, e nenhum de nossos conhecidos dentro de um raio de 100km estava disponível ou era compatível...

Explicamos a situação para Timothy, de que sua irmã estava num estado grave, e que precisávamos que ele fizesse um teste sanguíneo. Ele tinha grandes chances de ser compatível, afinal era filho dos mesmos pais... 

Ele concordou, sem hesitar: "Claro! O que vai precisar, mamãe?"

"Vai ser somente uma picadinha de mosquito no dedo, querido. Não vai doer quase nada..."
Bem, como esperávamos, seu sangue era compatível. Mas a situação de Judith havia se agravado. Bem tarde da noite, ela teve uma outra hemorragia. Ela precisaria agora, de uma transfusão direta. Não era como é feito hoje, precisava ser transferido direto para ela, era a tecnologia que tínhamos na época, naquela cidade do interior...

Perguntamos ao Timothy: "Você aceitaria, filho, transferir seu sangue para a sua irmãzinha?"
E ficamos surpresos com a resposta: "Eu preciso de um tempo para pensar... Posso dar a resposta amanhã de manhã?"

De boca aberta, sem saber o que fazer, fomos para casa. Passamos boa parte da noite tentando contactar alguns amigos que poderiam ser compatíveis, mas não encontramos. Já era bem tarde, e quase não conseguimos dormir. Todos acordamos bem cedo, inclusive o Timothy.
Ele foi o primeiro a puxar o assunto enquanto corríamos com o café para ir de volta ao hospital:

"Mamãe, já decidi, vou doar meu sangue para a Judith"

Respiramos aliviados, e explicamos a ele que aquela atitude salvaria a vida da sua irmã. Ele disse: "Eu sei, mamãe. Eu gosto da Judith. Ela precisa viver..." E nos abraçou como se fosse a última vez...

Nosso pequeno menino, meio temeroso por causa de tantos equipamentos, sentava-se imóvel na cadeira da sala do hospital. Ainda com medo, fechou os olhos quando chegou a hora de colocar a agulha. Abriu rapidamente, mas voltou a fechar quando viu que o sangue estava saindo de suas veias. Apertou os olhos...

Enquanto isso, conversávamos com o médico. Ele nos dizia que havíamos demorado para fazer a transfusão, mas que as chances eram boas, já que havíamos encontrado um doador compatível. Nos assegurou que uma transfusão de sangue resolveria o caso da hemorragia, e então tudo estaria resolvido dentro de alguns dias. Explicamos que o Timothy tinha pedido um tempo para pensar, mas o médico parecia não acreditar que tínhamos pedido a opinião dele para um assunto tão grave! Dissemos que preferíamos assim...

Timothy continuava com os olhos fechados. A transfusão ocorrendo. Pensou na sua irmãzinha... Pensou nos seus pais... Pensou de novo na Judith, e nos momentos felizes no jardim brincando e fazendo piqueniques...

Depois de alguns minutos, o médico tocou seu braço silenciosamente, despertando-o do seu "estado de nervos". Ele, ainda nervoso fez a pergunta que fez toda a diferença para nós:

"Vai demorar quanto tempo pra eu começar a morrer?"

Então, entendemos tudo...

Felipe Aguiar

Adaptado de uma história contada por Jack Kornfield, no livro "Palavra por Palavra", de Anne Lamott