segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Segredos... Quem não tem?

"Você não precisa me dizer os meus defeitos. Eu olho no espelho todo dia e os vejo numa profundidade muito maior do que você." (Amy Grant)

Soraya era uma criança tímida. Desde seu nascimento, de um parto longo e complicado, ela carregava em seu corpo marcas e cicatrizes. Ela, por si mesmo, tentava escondê-las, e posso dizer-lhes que apenas algumas pessoas haviam visto. Seu corpo denunciava as marcas do seu passado. Ela sabia de suas limitações físicas. Mas vivia uma vida normal.
Na fase adulta, se deparou com os desafios e os dilemas do relacionamento. No início, tentava se desviar dos olhares, mas depois acabou cedendo e entrando no jogo. Ela era feliz, mas uma coisa a perturbava às vezes: e se alguém visse suas cicatrizes? E se o interesse acabasse? Era, de verdade, o amor capaz de ver beleza no que lembrava tanta dor?
E, por causa disto, Soraya colocou um cadeado no seu coração. Ele foi ficando morno, frio, gelado, inacessível. O que era apenas uma timidez virou uma obsessão pelo encobrimento. Seu rosto não era mais visto, seu corpo não era mais visto. Soraya passou a se esconder de tudo e de todos. O medo de ser vista passou a dominá-la, e tanta riqueza interior foi jogada fora em busca de esconder algo que ninguém notava.
Um plano foi criado. Uma meta de permanecer sozinha para sempre. Era um plano perfeito. Sucesso profissional, trabalhar sozinha, ninguém pra chatear. Enfim, era um plano à prova de tolos... Mas, o plano estava fadado ao fracasso.
Um grupo de pessoas decidiu se aproximar. Eram pessoas legais, super descoladas. Não bebiam, não fumavam, não usavam drogas. Na verdade, eles falavam de um amor cujo prazer e contentamento superava todos os sentimentos causados por estas coisas. Falaram de um amor diferente do que Soraya conhecia. Falaram de uma paz que ia além do que entendiam...
E Soraya foi se abrindo. Como uma flor que desabrocha.
- Soraya, quem se esconde debaixo de tantas roupas pretas e maquiagem?
- Ninguém! Eu sou eu mesma sempre.
- Soraya, pode se abir conosco, do que você tem medo?
- Não sei...
- Nós estamos interessados em quem você é de verdade. Você não vai nos mostrar quem você é?

E, pela primeira vez, Soraya não se escondeu das expectativas externas. E, pela primeira vez, viu a vergonha e o medo sendo expulsos pela aceitação, e pela simples constatação:

- Querida, você tem suas marcas, você tem seus segredos, você tem seus arrependimentos... Mas quem de nós não tem?

Inspirado na música Betty, de Brooke Fraser

Felipe Aguiar

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Doces Amargos

Marcelo com dez anos, era um menino triste. Possuía muitos problemas em sua casa com o pai alcoólatra e a mãe ausente, que precisava trabalhar o dia todo. Muitos irmãos, dos quais era responsável sem que ninguém se responsabilizasse por ele mesmo, contribuíam para uma infância perturbada.
Na escola, inúmeros problemas: aprendizagem, indisciplina, brigas constantes tornavam o quadro de sua miséria ainda mais caótico.
Porém mais um ano na escola havia iniciado e Marcelo estava diferente. Levado agora por uma vizinha a uma pequena igreja que abrira perto a sua casa mostrava-se confiante e orgulhoso de sua nova condição: um servo de Deus. Descobrira-se amado do Senhor e escolhido para servi-lo na sua casa. Dizia a todos que ia à igreja aprender de Jesus. Sabia até alguns versículos de memória.
Mas sua glória profunda era o uniforme que ganhara da esposa do pastor, podendo ser alçado agora à condição de um obreiro mirim. Uma calça preta de tecido oxford, a camisa branca com botões e uma gravata também preta pra combinar com a calça. No peito, como uma medalha ostentava o pequeno crachá de metal comprado no bazar evangélico: Obreiro.
Agora Marcelo ficava na porta recepcionando as pessoas que passavam. Servia água ao pastor, momento em que, oh meu Deus, subia na pequena plataforma da igreja. Também entregava um cartão para os visitantes pela primeira vez.
De fato na escola seu comportamento não mudara muito, problemas de indisciplina e brigas com colegas continuavam constantes, porém no lugar de palavrões, Marcelo insultava seus rivais com novas ameaças:
- Você vai para o inferno, seu pecador desgraçado! Mas eu não, por que eu vou à igreja, eu fui escolhido por Deus para servir na sua casa. Jesus morreu por mim, eu leio a Bíblia e sou obreiro mirim.
Finalmente o mês de setembro chegara e a tradição dos doces distribuídos no dia dedicado a São Cosme e São Damião. O pastor já avisara: tudo do demônio! Inclusive contara com detalhes como eram feitos esses “doces inocentes” e a rituais que eram submetidos antes de serem entregues na rua. Relatara inclusive, o caso de uma criança que pegar um daqueles doces e contraíra feridas na mão. Um outro caso mais grave ainda, da menina que comera o doce e havia contraído meningite. Não morrera por misericórdia de Jeová que salvara sua vida, porém a menina ficara surda e muda para que servisse como um sinal a essa geração perversa.
Marcelo ouvira tudo assustado, mas entendera o recado: devia passar longe de tais doces, e nem ao menos conversar com as crianças que os comiam.
Porém a tentação estava no caminho para escola. Era quase 1h e Macelo ainda não almoçara, pois a comida que tinha em casa era para o pai e os irmãos menores que não haviam conseguido vaga na creche. Na verdade, isto não era um problema para ele, pois a comida da escola era muito mais farta e de melhor qualidade, sempre tinha uma carne, coisa rara em sua casa. Mas a fome já dava seus sinais e os colegas com quem ele sempre brincara estavam animados com vários sacos de doces em sacolas de mercado.
-Marcelo, vem com a gente, a dona Jandira está dando doces!
Era a voz da tentação.
- Eu não, não quero ficar doente. Agora eu sou um servo de Deus!
-Largue de besteira, você sempre comeu doce e nunca pegou nenhuma doença, o pastor fala isso por que é rico e os filhos dele levam dinheiro todo dia pra comprar doce na cantina da escola particular.
O que se seguiu não é necessário narrar, Marcelo sucumbira à tentação.
Não ficou doente, mas a notícia correra e chegara até os ouvidos da esposa do pastor, que friamente mandara um outro obreiro ir a casa de Marcelo pegar o uniforme de obreiro mirim de volta. Nenhuma palavra a mais, nenhuma visita. A vizinha ainda insistira para que Marcelo continuasse indo à igreja, mas como convencê-lo a enfrentar a esposa do pastor e o olhar de reprovação de todos?
A vida voltara a ser como antes. Marcelo agora ficara mais agressivo ainda nas brigas, nos insultos. Os colegas não perdiam oportunidade de lhe jogar na cara a exclusão tão precoce.
-Cadê seu uniforme de obreiro mirim, Deus não tinha escolhido você pra servir na casa dele?
Marcelo então respondia:
-Eu que não quis aquele uniforme, era quente, pinicava meu pescoço. Igreja pequena, não tinha nem bateria, não tinha cura, não tinha nada. Eu vou servir a Deus por que foi ele quem me escolheu, não foi aquela mulher chata! Eu vou é pra uma igreja grande, com ar- condicionado, vou aparecer na televisão, aí vocês vão entrar na fila pra eu orar por vocês. Vou andar de avião, vou dar tchauzinho pra vocês lá do alto, eu vou comprar aquela igreja.
- Vai nada, seu comedor de doce, você vai pro inferno.
- Vou nada, eu já aceitei Jesus! Já aceitei! Eu sou crente agora, tá! E você é pecador! Anda, seu pecador, diz que eu sou crente agora, senão eu quebro a tua cara! -Gritava Marcelo entre socos e pontapés, aplicando uma gravata no rival.

Lenise Freitas